Estudo detecta expansão de redes que publicam pesquisas fraudulentas e alerta para ameaça global à ciência
Um levantamento que examinou mais de 5 milhões de artigos, distribuídos em 70 mil periódicos, concluiu que a fraude científica deixou de ser um fenômeno pontual e passou a operar em escala global por meio de redes organizadas de autores e editores. Os resultados foram divulgados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e indicam que problemas de integridade acadêmica se tornaram sistemáticos, envolvendo colaborações clandestinas para colocar estudos falsos em circulação.
Como o esquema funciona
De acordo com os autores da pesquisa, grupos de editores vêm atuando de forma coordenada para aprovar artigos de baixa qualidade ou com dados fabricados, contornando os processos tradicionais de revisão por pares. Essas redes interligam periódicos, autores e intermediários que facilitam a publicação de manuscritos sem rigor científico. Entre os artifícios identificados estão:
• Fábricas de artigos: estruturas que produzem estudos em larga escala, muitas vezes reutilizando ou inventando dados.
• Periódicos predatórios: publicações que cobram taxas para divulgar trabalhos sem avaliar metodologicamente o conteúdo.
• Periódicos de autopromoção: revistas em que os próprios autores ocupam cargos editoriais e aprovam seus manuscritos.
Escala do problema
Os pesquisadores calculam que até um em cada sete artigos possa conter informações falsas ou manipuladas. Ferramentas de inteligência artificial contribuem para a proliferação dessas práticas, facilitando a geração automática de texto e a duplicação de imagens. Redes de detecção já identificaram milhares de figuras repetidas em diferentes publicações, indício de reutilização indevida de resultados.
Consequências para a comunidade científica
A disseminação de estudos fraudulentos ameaça a confiança na produção acadêmica, contamina metanálises e pode atrasar o desenvolvimento de tratamentos médicos. Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, pesquisas sem validação adequada influenciaram decisões políticas sobre o uso da hidroxicloroquina, ilustrando o potencial impacto de conclusões enganosas na saúde pública.
Distribuição geográfica e resiliência
O levantamento mostra que a fraude não se concentra em regiões específicas. Casos foram encontrados em revistas de diversos continentes, inclusive Europa e Estados Unidos, contrariando a percepção de que o problema estaria restrito a ambientes com menor infraestrutura científica. As redes também se revelaram resilientes: quando identificadas em um periódico, migram para outros ou criam novas revistas para manter a operação.
Pressões que alimentam a má conduta
Especialistas apontam que a competição por financiamento e posições acadêmicas intensifica a busca por resultados rápidos. Publicar com frequência continua sendo critério central de avaliação em várias áreas, o que pode incentivar atalhos. Estudos citados no artigo da PNAS correlacionam a má conduta a um ambiente percebido como injusto, com acesso desigual a recursos e treinamento.
Mesmo grupos com financiamento adequado enfrentam incerteza intrínseca à pesquisa: não há garantia de que um projeto produzirá descobertas relevantes. Nesse contexto, alguns autores recorrem a fabricação ou manipulação de dados para atingir metas estabelecidas por agências de fomento ou instituições.

Imagem: terra.com.br
Ações de detecção e resposta
Editoras e organizações vêm investindo em novos métodos para localizar trabalhos problemáticos. Ferramentas que rastreiam padrões de citações, sobreposição de imagens e semelhanças textuais permitem mapear redes suspeitas. Quando evidências são confirmadas, o procedimento inclui a retratação, isto é, a retirada formal do artigo do registro científico.
Em 2024, a editora Springer Nature informou ter retratado 2.923 artigos após identificar irregularidades graves. O estudo recém-publicado também constatou que autores envolvidos em trabalhos já retractados continuam encontrando meios de divulgar novos manuscritos, reforçando a necessidade de monitoramento contínuo.
Caminhos para mitigar a fraude
Entre as possíveis soluções discutidas pelos pesquisadores está a revisão dos indicadores usados para avaliar a produção acadêmica. Métricas quantitativas, como número de publicações e citações, tendem a estimular volume em detrimento de qualidade. Abandonar esses critérios, segundo os autores, reduziria o incentivo para recorrer a práticas ilícitas e valorizaria processos de pesquisa mais robustos.
Além disso, recomenda-se ampliar iniciativas de educação em integridade científica, reforçar a transparência nos dados brutos e incentivar repositórios abertos que permitam a verificação independente de resultados. A adoção de revisões por pares mais extensas ou duplas, nas quais dois editores conduzem avaliações separadas, é outra medida considerada.
O estudo conclui que a proteção da confiabilidade científica depende do engajamento de universidades, financiadores, editoras e sociedades acadêmicas em políticas que priorizem rigor e transparência. Sem mudanças estruturais, alertam os autores, as redes de fraude tendem a crescer e comprometer ainda mais a credibilidade da produção de conhecimento.