Crianças morrem de fome em meio a cerco de 14 meses na cidade sudanesa de El-Fasher
EL-FASHER, Sudão – A escassez extrema de alimentos provocada por um bloqueio que já dura 14 meses levou à morte de crianças por inanição na cidade de El-Fasher, capital do estado de Darfur do Norte. Médicos, organizações humanitárias e moradores relatam aumento acelerado de casos de desnutrição grave, ao mesmo tempo em que hospitais sofrem bombardeios e falta generalizada de insumos.
Combate entre Exército e RSF mantém população encurralada
Desde abril de 2023, as Forças Armadas Sudanesas e os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF) travam combates intensos pelo controle da cidade – último reduto do Exército na região de Darfur. Após perder Cartum no início deste ano, a RSF reforçou o cerco a El-Fasher, restringindo entradas e saídas e intensificando a ofensiva na última semana.
No norte e no centro do país, onde o Exército recuperou parte do território, comboios de ajuda começaram a chegar. Em Darfur, porém, a operação militar impede a entrada regular de suprimentos. As Nações Unidas aguardam autorização formal da RSF para liberar caminhões que já receberam sinal verde dos militares governamentais.
Preço de alimentos dispara e população recorre a ração animal
A ruptura das cadeias de abastecimento fez os preços nos mercados locais explodirem. Segundo o Conselho Norueguês para Refugiados, US$ 5.000 (cerca de 3.680 libras esterlinas) alimentavam 1.500 pessoas durante uma semana há três meses; hoje, a quantia paga uma refeição de um dia. Em cozinhas comunitárias, voluntários preparam ambaz – resíduo de amendoim normalmente destinado a animais – por falta de farinha, sorgo ou milheto.
Moradores relatam que o dinheiro que anteriormente garantia comida para sete dias agora compra apenas uma refeição. Organizações humanitárias acusam ambas as partes do conflito de usar o “fome como arma de guerra” e mencionam relatos de estocagem de mantimentos para fins militares.
Sistema de saúde colapsa sob ataques e falta de insumos
Hospitais foram danificados por bombardeios e funcionam com capacidade mínima. No Al-Saudi Hospital, referência pediátrica, não há sachês de alimento terapêutico para crianças com desnutrição severa. O médico Ibrahim Abdullah Khater afirma que pacientes pediátricos internados convivem com complicações médicas sem acesso a tratamento adequado.
Relatórios regionais citam mais de 60 mortes por subnutrição apenas na última semana, número difícil de confirmar pela ausência de registros sistemáticos. Organizações não governamentais alertam que os óbitos tendem a ocorrer primeiro entre crianças, doentes crônicos e idosos.
Cólera se espalha em campos de deslocados
A crise alimentar coincide com um surto de cólera alimentado pela destruição de infraestrutura hídrica e pela estação chuvosa. Em acampamentos improvisados nos arredores de El-Fasher, a média de água disponível é de três litros por pessoa por dia, abaixo do mínimo recomendado. Falta cloro, sabão e instalações de saneamento.

Imagem: bbc.com
Milhares deixaram o campo de deslocados de Zamzam após a tomada da área pela RSF em abril. Na rota de 60 km até Tawila, a oeste, civis relatam extorsões, ataques e bloqueios nas estradas. Apesar disso, Tawila oferece acesso limitado a organizações como Médicos Sem Fronteiras (MSF) e Aliança para Ação Médica Internacional (ALIMA), que enfrentam escassez de medicamentos e material de higiene.
Gestantes, crianças e idosos chegam à localidade desidratados e debilitados. Casos de cólera são tratados em tendas, porém suprimentos de sais de reidratação e antibióticos não cobrem a demanda.
Apelos por corredor humanitário urgente
O Fundo das Nações Unidas para a Infância, a Organização Mundial da Saúde e dezenas de ONGs difundiram nota conjunta esta semana pedindo cessar-fogo temporário para entrada de alimentos, água potável, combustíveis e kits médicos. Os grupos denunciam “ataques sustentados, obstrução de ajuda e destruição deliberada de infraestrutura crítica” com objetivo de “quebrar a população civil por fome, medo e exaustão”.
A RSF afirma que a pausa humanitária pode ser usada para reabastecer posições do Exército dentro da cidade, mas declarou estar criando “rotas seguras” para civis. Até o momento, relatos de moradores indicam que rotas terrestres continuam bloqueadas e expostas a violência.
Impacto imediato sobre a infância
Com refeições reduzidas a uma por dia, muitas crianças dependem exclusivamente das cozinhas comunitárias. Médicos alertam para o avanço rápido da desnutrição aguda: sem intervenção urgente, o número de mortes infantis deve crescer. Agentes locais conseguem receber doações eletrônicas, mas a hiperinflação neutraliza o efeito do dinheiro.
Sob cerco, bombardeios recorrentes e surtos de doenças, El-Fasher permanece isolada. Moradores e profissionais de saúde repetem pedidos de ponte aérea ou lançamento aéreo de suprimentos até que um corredor terrestre seja viabilizado. Enquanto negociações ficam paralisadas, o quadro humanitário se deteriora e reforça a percepção de que a fome virou instrumento central no conflito sudanês.