Brasil acusa EUA de ameaçar sistema de comércio mundial com nova rodada de tarifas

Brasil acusa EUA de ameaçar sistema de comércio mundial com nova rodada de tarifas

O governo brasileiro levou à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma queixa formal contra a política tarifária adotada por Washington desde a volta de Donald Trump à Casa Branca em janeiro de 2025. Em pronunciamento no Conselho Geral, o Itamaraty classificou o conjunto de medidas americanas como um “ataque sem precedentes” ao regime multilateral criado após a Segunda Guerra Mundial, alertando para o risco de uma escalada de preços e de estagnação econômica global.

Nos últimos seis meses, a administração Trump anunciou tarifas sobre quase todos os parceiros comerciais dos Estados Unidos, justificando-as como ações “recíprocas” ou vinculadas à segurança nacional. A estratégia inclui percentuais diferenciados entre os países: o Brasil terá parte das exportações taxadas em 50% a partir de 6 de agosto; o Canadá já sofre sobretaxa desde 1.º de agosto; e a China enfrentará tarifa básica de 30% a partir de 12 de agosto. Ao todo, um decreto presidencial publicado em 31 de julho lista produtos de mais de 90 nações sujeitos a novas cobranças.

Pressão sobre as normas multilaterais

Especialistas em direito econômico internacional apontam que a Casa Branca viola compromissos assumidos pelos Estados Unidos no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e nos tratados que formam a OMC. A crítica central recai sobre o artigo II do GATT, que obriga os membros a manter tarifas dentro dos limites consolidados. Segundo analistas, nenhuma das exceções previstas – como medidas antidumping, antissubsídios ou salvaguardas – se aplica às tarifas unilaterais anunciadas por Trump.

Outro princípio contestado é o da Nação Mais Favorecida (NMF), previsto no artigo I do GATT, que determina estender automaticamente a todos os membros qualquer tratamento tarifário concedido a um parceiro. Ao estabelecer percentuais distintos para países diferentes, Washington cria, na avaliação de juristas, tratamento discriminatório. A única exceção admitida seriam acordos de livre-comércio que abranjam “substancialmente todo o comércio”; entretanto, os entendimentos parciais negociados nas últimas semanas com Reino Unido, Japão, Vietnã e Indonésia não atendem, segundo a maioria dos especialistas, ao requisito de amplitude.

Justificativas da Casa Branca

A equipe de Trump defende que as sobretaxas visam corrigir déficits bilaterais, conter práticas consideradas desleais – como subsídios industriais e transferência forçada de tecnologia – e gerar receita extra para o Tesouro. O presidente também mencionou segurança nacional ao explicar tarifas sobre Canadá, México e China em janeiro, alegando combate a imigração ilegal e tráfico de drogas. Em relação ao Brasil, o governo americano relacionou a nova alíquota de 50% a alegado “tratamento injusto” ao ex-presidente Jair Bolsonaro, argumento que Brasília considera político e sem precedente nos registros da OMC.

Impacto sobre acordos existentes

Além das regras multilaterais, a ofensiva tarifária afeta compromissos regionais. México e Canadá contestaram publicamente a violação do USMCA, que prevê tarifas zero em produtos comercializados entre os três países. Pressionado, Trump suspendeu a cobrança sobre itens cobertos pelo pacto dois dias após sua entrada em vigor, mas manteve sobretaxas em categorias não contempladas, gerando insegurança jurídica e questionamentos adicionais.

Capacidade de reação dos demais membros

Qualquer país que se considere prejudicado pode acionar o mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Contudo, desde 2019 o Órgão de Apelação está paralisado porque os Estados Unidos bloqueiam a nomeação de novos árbitros. Sem quórum para revisar decisões, basta que uma das partes recorra para congelar o processo, o que mina a efetividade do sistema. Esse impasse limita a possibilidade de retaliações autorizadas e, na prática, incentiva outros governos a negociar acordos bilaterais para escapar das tarifas americanas.

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Imagem: terra.com.br

Risco de fragmentação

Pesquisadores veem na postura de Washington um sinal de enfraquecimento do multilateralismo. Para parte deles, a adoção de tarifas extensas e a oferta seletiva de isenções pressionam países a renegociar suas relações comerciais em bases individuais, o que pode acelerar a substituição de regras comuns por arranjos ad hoc. Persistindo o bloqueio ao Órgão de Apelação, a tendência é que disputas sejam levadas a painéis arbitrais privados previstos em tratados regionais ou bilaterais, cuja legitimidade e jurisprudência ainda carecem de consolidação.

Outro grupo de especialistas, embora reconheça as violações, acredita que a maioria dos países busca preservar a OMC por entender que previsibilidade e transparência continuam essenciais para o fluxo de mercadorias e serviços. Segundo essa visão, acordos fechados sob pressão representam concessões táticas para reduzir danos imediatos, não um abandono definitivo das normas multilaterais.

Consequências para o Brasil

A tarifa de 50% anunciada por Trump cobre parte relevante da pauta exportadora brasileira, mas prevê isenção para cerca de 700 produtos. Ainda assim, setores como o de suco de laranja, que direciona aproximadamente 40% das vendas externas ao mercado norte-americano, avaliam impacto significativo nos custos e na competitividade. O governo brasileiro estuda contramedidas, mas enfrenta o mesmo obstáculo dos demais membros: a paralisia do sistema de apelação da OMC.

Representantes do Itamaraty afirmam que, mantido o quadro atual, a economia global pode entrar em ciclo de alta de preços e menor crescimento, cenário que afetaria principalmente países em desenvolvimento. A avaliação será levada a fóruns multilaterais nas próximas semanas, enquanto Brasília decide se formaliza uma disputa contra Washington ou se prioriza negociações diretas para tentar mitigar perdas.

Com a continuidade da política tarifária de Trump e a ausência de mecanismos de arbitragem plenamente operacionais, o futuro do comércio internacional permanece incerto. A principal dúvida é se o sistema baseado em regras multilaterais resistirá à pressão das grandes economias ou se dará lugar a uma ordem construída caso a caso, em que barganhas bilaterais definem as condições de acesso aos mercados.

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